O impacto da indústria cinematográfica no processo de gentrificação

O impacto da indústria cinematográfica no processo de gentrificação

28 Agosto, 2020 0 Por Redação

Todo bom espectador já deve ter se pego questionando ao ver um filme “Onde será aquela praia?” ou “Aquele monumento me parece familiar”, essas e outras dúvidas que podem despertar um desejo de conhecer o cenário de seu tão amado longa. Curiosamente, alguns filmes são feitos exatamente com esse propósito, como no caso de Cartas para Julieta (2010) que pode ser considerando como uma “carta de amor” a Verona na Itália, visto que a prática de entregar cartas para Julieta (personagem da obra de William Shakespeare) abordada no enredo do filme, não poderia ocorrer em outro local visto que Verona é a cidade que inspirou Shakespeare.

Reprodução: Shutterstock

Visando aproveitar ao máximo a propaganda gerada pelos filmes, muitas cidades transformam cenas de filmes em produtos turísticos, como na Nova Zelândia onde construíram de forma definitiva a Vila dos Hobbits, conhecida como Hobbiton e também como a famosa plataforma 9 ¾ no metrô de Londres, famoso cenário de Harry Potter que sempre reúne turistas. Bom, mas se você chegou até aqui, deve estar se perguntando “Mas o que tudo isso tem haver com gentrificação? e o que seria gentrificação?”, Gentrificação nada mais é do que o nome dado ao processo de modificação das áreas urbanas periféricas, remodelando os locais oferecendo comércio novo, construções de novos edifícios e espaços de lazer moderno, com o objetivo de tornar a área reformada um espaço “nobre”. O “cineturismo” como alguns chamam a prática do turismo motivado pelo cinema, tem crescido cada vez mais levando muitas empresas e viajantes a divulgar a pratica como no caso da alemã Andrea David, que durante a sua formação em gestão de turismo surgiu com a idéia de divulgar em seu Instagram (@filmtourismus ) Suas viagens em busca de cenários de filmes e séries famosos, hoje em dia seu perfil possui cerca de 772 mil seguidores.

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“E que impacto essa prática pode gerar?” A questão é que qualquer visita turística, mesmo que indiretamente, gera um impacto na região visitada. Impacto esse que pode incentivar tanto frutos positivos como a circulação da renda local ou pode gerar frutos negativos e alarmantes como a interferências no modo de vida dos moradores. Um dos principais pontos que como viajantes deveríamos avaliar na hora de programar uma viagem, é como a nossa visita vai ser vista pelos residentes locais, se eles costumam ver turistas com um olhar positivo ou não, afinal de contas, grande parte da nossa experiência depende deles, são os habitantes do seu destino que estarão presentes de maneira direta e também indireta ao longo da sua estadia, o mínimo que deveríamos fazer como visitantes é respeitar cultura, posicionamentos e modo de vida dos moradores.
Infelizmente, existem casos recentes e que tem se tornado cada vez mais freqüentes, de turistas em regiões onde filmes foram gravados, agindo de maneira desrespeitosa não só com o local, mas com os moradores. Já sabemos que cenários de filmes podem se tornar tão famosos quanto à própria produção, mas até onde vale à pena fazer de tudo para conhecer a paisagem do seu filme favorito? Um local que com certeza precisamos citar ao falar dessas ocorrências é a cidade de Nova Iorque, que não só está presente em inúmeros filmes e séries, como grande parte da cidade já passou pelo processo de gentrificação, algo que mesmo como turista é notável, seja através da observação da arquitetura moderna e extravagante presente em grande parte da cidade, como pelas variações extremas de preços entre as regiões “não tão modernas” e as regiões mais humildes.

Existe um debate de anos entre os moradores de Nova Iorque sobre o posicionamento dividido deles sobre turistas, inclusive talvez em algum filme ou série que se passe por lá, você já tenha visto algum diálogo sobre como “A Times Square vive cheia de turistas” com algum personagem falando de maneira irritada sobre o fato. Os motivos que podem levar um morador a se irritar com a presença de turistas podem ser extremamente variados, mas especificamente em Nova Iorque, os residentes contra turistas costumam vir de bairros vítimas do processo de gentrificação, ou que estão sujeitos a passar por ele. Um dos exemplos mais recentes ocorreu no segundo semestre de 2019 no distrito do Bronx, onde as famosas escadas do filme “Coringa” se encontram, graças ao sucesso do filme, várias pessoas passaram a visitar as escadas que estão sendo popularmente chamadas de “Joker Stairs”. Mas o que nenhum desses visitantes parecem ter percebido, é o quanto os moradores do Bronx não estão confortáveis com a presença não requisitada deles. Como nesse vídeo onde vemos um deles mostrando seu descontentamento, jogando ovos nos turistas que lotaram a escada enquanto protesta “Saiam daqui e vão para onde os turistas deveriam ir”

Outro vídeo mais recente, de janeiro desse ano, mostra um número maior de manifestantes, que no meio dos protestos contra a violência policial, levou as escadas cartazes escritos com: “Pobreza não é crime”, “Turistas vão para casa”, “Pegue o Bronx de volta”. O que motivou os protestos a ocorrerem no local, segundo uma ativista foi o interesse crescente dos turistas nas escadas desde o lançamento do filme, ela afirma que isso mostra o quanto as comunidades deles são usadas como parque para a elite. O que ambas as manifestações tem em comum, é um sentimento de revolta gerado por saber o que costuma acontecer com pontos turísticos em Nova Iorque: Gentrificação. Acontece que o Bronx é um dos últimos distritos não tomados pela gentrificação e que possui grande maioria da população pobre e negra. Muitos dos moradores já sabem como costuma funcionar: Seguido do número crescente de visitantes, vem um aumento do interesse do mercado imobiliário nos imóveis da região e aumento de preços nos comércios visando lucrar com o número maior de pessoas freqüentando a região, até que os residentes que sobrarem se vejam não tendo mais condições de manter o estilo de vida de antes e sejam de certa maneira, obrigados a se mudar.

Outro local que sofreu com o aumento de visitas depois de aparecer num filme, foi Maya Bay, praia localizada na ilha de Phi Phi Leh, na Tailândia. Cenário do filme A Praia (2000) dirigido por Danny Boyle, e estrelado por Leonardo DiCaprio, a Maya Bay se tornou um dos maiores pontos turísticos de Phi Phi Leh graças ao filme, junto com o aumento de turistas, logo surgiram problemas ambientais como aumento de lixo na praia e morte dos corais presentes na costa. Os danos ambientais acabaram tomando proporções tão grandes, que desde 2018 Maya Bay esta fechada para visitações, e com fiscalização intensa para garantir que continue assim. Muitos viajantes alegam terem viajado para a Tailândia somente para conhecer Maya Bay, ou para conseguir “A selfie perfeita” no cenário onde foi gravado o “filme do DiCaprio”, sem sequer se darem conta dos danos que causaram ao local, e que, mesmo tendo melhorado após o isolamento da praia, levaram anos para serem completamente recuperados. Toda a paisagem natural do local, que o torna o “local perfeito para selfies”, ironicamente foi morrendo aos poucos para que alguns conseguissem realizar esse sonho.

Reprodução: BBC

A Tailândia, assim como muitos países, depende bastante do turismo economicamente, por conta disso provavelmente terão que planejar uma reabertura de Maya Bay, visto que o local gera lucro.
Mesmo que locais como a praia de Maya Bay ou o Bronx, fossem abertos a livre circulação de turistas e fãs de cinema, valeria a pena o risco do excesso de visitas impactar, mesmo que inconscientemente, no processo de gentrificação desses locais? Existe alguma maneira de equilibrar as necessidades locais com as dos visitantes?